sábado, 23 de agosto de 2008

Já era hora!

Tempo
Arnaldo Diniz



Já completava a terceira vez que o grande alcançava o pequeno, e contava a ilusão monótona das horas. E se não fosse pela inquietação daquelas madeiras que ripavam ao longe, incessantemente – como que remendando qualquer outra máquina estúpida que não um relógio – trabalhadas pela mão de seu pai, com destreza singular, que só um homem em sua sensibilidade poderia representar.

Zezé acordava outra vez tresloucada. Curiosa com os estampidos, provavelmente provocados pelo cravejar da mesma madeira que algum dia lhe serviu e carregou, ou carregou aos seus amigos do passaredo – que hoje ainda, insistem em violentar a alvura azul daquele céu rasgado. E teve medo de seu pensamento: “e se as nuvens fossem traças?!”

“Senhor Arnaldo! Senhor Arnaldo!” Uma negra grande vinha ao longe, correndo e segurando seus panos com as duas mãos, atrapalhada na efervescência da sua situação, e da emergência com que as suas palavras procuravam fugir-lhe da boca: “Trenzin chega hoje não senhor...” E antes que a ausência do seu trabalho fizesse falta à Zezé – que agora estava preocupada com suas nuvens-traça – ou às suas próprias madeiras – se pudessem elas esfriar no ânimo, ao perceberem que não mais recebiam o flagelo de uma sova bem aplicada – apaziguou a negra e a despachou. Apanhavam, mas sentiam um amor infinito por aquele homem.

“Sei Remédios. Agora vai e assiste a tua família que já é tarde”. E a negra foi ter com os seus... E o grande passava o pequeno outra vez...

Quando chegou em casa, Arnaldo foi encontrar sua filha lá no quartinho dos fundos, que algum dia havia sido uma despensa. Mas Arnaldo o fizera sua bancada. E lá, punha toda a espécie de instrumentos para sua faculdade. Zezé observava as peças angustiada, e chorava agarrada a um toco de pau-ninguém – um toco qualquer – não se sabe de onde vindo. Um choro vazio. Assim como vazio era o que seus olhos refletiam: a fabulosa idéia de que um céu tão lindo era comido por traças. E ela nada podia contra as traças, porque não era pombo e não as podia alcançar. Odiava aquelas traças. Aquelas nuvens que teimavam só em ficar, e não conheciam a ordem das coisas – demasiadamente prudentes para não se precipitar.

Foi então que percebeu seu pai, parado, olhando da porta. E viu seus pés molhados, afogados nas lágrimas saídas de seus próprios olhos. Pôde acompanhar o rastro deixado por elas: desde a face, caminhando sobre a fazenda de seu vestido, descendo-lhe o ventre e as pernas, até tocar o chão.


Agora chorava mais ainda, mas de felicidade. Uma felicidade permitida. E somente pela certeza de que não importando o quando nem o quanto. Nem quando viessem as traças a desistir daquele céu tão seu, nem quanto as madeiras de seu pai deveriam ainda flagelar, para que se construíssem pombais e mais pombais, para que todos aqueles pombos, brancos e famintos, subissem aos céus em busca das traças. E saciassem sua fome e a fome dela: Ma. José.

Naquele momento podia sentir. Ouvia os pombos partindo e se deleitava às narinas com um cheiro de terra molhada que ainda não se via. Correu até a porta e o abraçou... Como o grande abraçava o pequeno: sem pensar. Percebeu que nunca é tarde, pois, agora, era todo seu, o tempo. Qualquer um, grande ou pequeno.


***


Por tempo, amou os pombos, e as traças, e o toco de pau-ninguém... E ninguém mais no mundo, no seu mundo infinito, soube realmente de onde vinham as traças que alimentavam todo o seu choro e regava a terra como exemplo de amor para as nuvens – ainda prudentes, mas mesquinhas.

Conheceu uma imensidão jamais solitária, e arrependeu-se do dia em que teve ódio das traças que lhe roíam o céu. Contava agora com o seu coração, repetidamente, como faziam o grande e o pequeno. Apertou mais ainda seu pai, pois fazia notar que não mais se deixariam. Seja para surrar ex-árvores, seja para questionar a inexistência das águas teimosas em voar. Ficaram unidos pelo nó dos ponteiros; na certeza de que a cada volta, numa volta incessante, seria o que acontece por fora apenas ilusão. O que realmente lhe importa era que estava dentro. Apesar de chamá-lo de nó, preferia entender união.

E os ponteiros do relógio se encontravam novamente: Quando o grande passou pelo pequeno mais outra vez, mas que só importa aos relógios - que nunca vêem o tempo passar, alheios aos seus próprios ponteiros... Assim como ele sempre pôde, ela agora podia. Então pensou: “e se eu fosse, agora, um pombo-relógio?!. As gotas da chuva seriam meus próprios segundos... os rios minutos, horas e dias... e os oceanos...? Anos! Anos e mais anos!”

Pertencia a outra realidade. Podia estar nos mares, na terra, ou subir aos céus. Eternamente pertencente à sua própria natureza e à natureza que a criou. Voou, e sentiu a frescura dos ventos; e se banhou, sentindo na pele a presença dos tempos; e pensou, que no dia em que viesse a submergir nas entranhas de Gaia, estaria em repouso por todo o tempo, todas as gotas rasgadas das traças que um dia odiou e que fez dela o amor sem tempo.


* * * FIM * * *

2 comentários:

Zeza disse...

Que susto. Não esperava por essa às nove da manhã...

Cada vez que eu leio, encontro coisas diferentes. É assim com vc também, Du?

emmibi disse...

uauuuuuuuuuuuuuuuuu

quantos devaneios.

que lindo!